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Carta de Maceió reafirma resistência aos retrocessos na área de alimentação no país
Postado em 09/10/2022 | fonte - Asbran

No período de 04 a 07 de outubro de 2022 aconteceu pela primeira vez na cidade de Maceió, capital do estado do alagoas, a 27ª edição do Congresso Brasileiro de Nutrição (CONBRAN), evento promovido pela Associação Brasileira de Nutrição (ASBRAN) e Associação Alagoana de Nutrição (ALNUT). Esta edição trouxe como tema “Nutrição nas diferentes fases da vida: Desafios para a promoção da saúde e da Segurança Alimentar e Nutricional”, oportunizando ao público congressista refletir sobre as distintas dimensões do comer, alimentar e nutrir.

Após um exaustivo período de isolamento social devido à pandemia da Covid-19, que desencadeia a síndrome respiratória aguda, o XXVII CONBRAN nos fez respirar! Os encontros e reencontros materializaram o que há muito desejávamos: abraçar pessoas que nos últimos 30 meses apenas víamos/ouvíamos nas telas dos diferentes dispositivos eletrônicos.

O público de quase 2.500 participantes, entre nutricionistas, técnicos e técnicas de nutrição, estudantes, docentes, pesquisadores e pesquisadoras da área de nutrição e outras áreas do conhecimento, fez essa edição do congresso se tornar memorável. Cabe mencionar a diversidade dos sotaques dos diferentes estados brasileiros e, também, a presença de pessoas de outros países das Américas do Sul e do Norte, África e Europa.

É possível afirmar que as reflexões e debates promovidos pelos 127 palestrantes foram responsáveis diretos pelo sucesso deste CONBRAN. Os sorrisos fartos que se viam nos rostos, os comentários que se partilhavam nas áreas de circulação, as trocas permanentes de saberes foram, e seguem sendo, o termômetro dessa constatação.

É importante ressaltar que — no Brasil — o CONBRAN representa a expressão máxima da Ciência da Nutrição. Porém, é preciso reconhecer que nos últimos anos a ciência vem sendo negligenciada e negada. Mais do que nunca precisamos pautar uma ciência comprometida com os processos sociais e políticos para que sejamos capazes de questionar as desigualdades que são reproduzidas e perpetuadas e, ainda, para que tenhamos uma ciência que seja inclusiva e propositiva. Nesse sentido, a programação científica foi construída de forma coletiva por uma comissão formada sob rigoroso critério de seleção, obedecendo critérios de competência científico-profissional, considerando as distintas dimensões que são aplicadas na construção do conhecimento científico no campo da Alimentação e Nutrição, sem negligenciar as representações regionais do nosso gigante país.

Diversas consultas foram realizadas via redes sociais e e-mails dos associados e associadas da rede ASBRAN buscando identificar temas e pessoas que contemplassem o interesse dos/das congressistas. O resultado dessas enquetes, considerando-se, respectivamente, os dez mais votados, foi 100% respeitado. A complementação da programação foi feita por cada uma das oito subcomissões conforme as áreas específicas: Alimentação Coletiva, Ciência e Tecnologia de Alimentos, Nutrição Clínica, Nutrição em Esportes, Nutrição em Saúde Coletiva, Nutrição em Saúde Materno Infantil, Nutrição em Fitoterapia e Formação Profissional.

Visando assegurar a ausência de interferências de interesses mercadológicos que enviesassem as opiniões e discussões empreendidas, de modo que estas fossem pautadas exclusivamente na reflexão, pensamento crítico e embasado em evidências científicas, a coordenação do XXVII CONBRAN foi cuidadosa nas escolhas a fim de  eliminar a existência de conflitos de interesses no que diz respeito às propostas relacionadas às ações de atenção dietética, promoção da Alimentação Adequada e Saudável, avaliação das políticas de Alimentação e Nutrição, bem como às condutas e protocolos para intervenções dietoterápicas.

O tema mobilizador — “Nutrição nas diferentes fases da vida: Desafios para a promoção da saúde e da Segurança Alimentar e Nutricional” — traduziu o objetivo do CONBRAN 2022 de promover discussões de caráter técnico-científico, mas também político, social e cultural acerca da Alimentação Adequada e Saudável como um direito humano universal. Nesse aspecto, destaca-se o reconhecimento cada vez maior por parte da sociedade quanto ao papel imprescindível da Alimentação e Nutrição na manutenção, recuperação e promoção da saúde. Por outro lado, com o avanço científico que tem ocorrido em todas as áreas e, em particular no âmbito das Ciências Nutricionais, acumulam-se evidências da estreita relação entre Alimentação, Nutrição e Saúde.

Todavia, os cenários epidemiológico, político, econômico e social apresentados atualmente exigem de todos que têm compromisso com uma sociedade mais justa e igualitária um evidente posicionamento político diante dos retrocessos observados nos últimos anos, além da reflexão crítica.

Em janeiro de 2019, uma das primeiras deliberações do atual governo foi extinguir mais de 60 Conselhos Nacionais — instâncias de controle social — responsáveis por acompanhar, monitorar e propor ações/alterações/implementações nas mais distintas políticas públicas sociais. Dentre estas instâncias, estava o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional/CONSEA, espaço onde a sociedade civil organizada tinha a oportunidade de exercer o controle social sobre as questões relativas à Garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada.

Ao longo dos últimos anos observou-se a aprovação de mais de 1.400 substâncias tóxicas para uso na agricultura; a destruição em proporções inéditas do pantanal, do cerrado e da Amazônia pelo desmatamento e pelas queimadas; a expressiva redução de terras destinadas à produção de alimentos (como feijão, arroz, mandioca); a elevação desmedida dos preços dos alimentos que compõem a cesta básica, entre outras situações que repercutiram (e seguem) com impactos negativos e imensuráveis para o meio ambiente, para a Segurança Alimentar e Nutricional, determinando prejuízos não apenas para o Brasil, mas para todo o resto do mundo.

Com claro viés para beneficiar o consumo de alimentos ultraprocessados, que tantos danos causam à saúde, vieram os ataques ao Guia Alimentar para a População Brasileira.

Testemunhamos perplexos o desmonte das políticas públicas de saúde, educação, ciência e tecnologia, preservação do meio ambiente, entre outras. Como consequência, acompanhamos o aumento da pobreza, da insegurança alimentar, a redução da cobertura vacinal com retorno de enfermidades já controladas e, como pior de tudo, a terrível volta do Brasil ao mapa da fome.

Tal cenário foi agravado pela pandemia da Covid-19 que, pelo despreparo, descompromisso com a qualidade de vida da população, e  comportamento negacionista por parte de alguns governantes, o Brasil registrou um excedente de mortes que poderiam ter sido evitadas se medidas efetivas fossem tomadas oportunamente. Todavia, o cenário poderia ter sido muito pior se não fosse a existência e resistência do SUS em nosso país, o maior sistema de saúde pública de acesso universal e gratuito do mundo. Por esta razão, reiteramos nosso apoio ao SUS, o qual deve ser valorizado, respeitado e fortalecido por todos que fazem esta nação.

Destacamos que, enquanto nação brasileira, ainda não fomos capazes de enfrentar o racismo estrutural, que normaliza as iniquidades e os privilégios sociais, a depender do grupo que se pertence. O racismo compromete todas as dimensões da vida dos brasileiros e brasileiras, com especial destaque na concretização dos direitos fundamentais, como a alimentação. Os inquéritos da rede PENSSAN (2021 - 2022) confirmam tal assertiva e nos convocam a um firme posicionamento.

Não podemos negar o papel que a produção de alimentos pautada no agronegócio e na transformação de alimentos em commodities tem na origem do menor acesso da população à alimentação adequada, já que o agronegócio está voltado, sobretudo, à exportação. Assim, é urgente e necessário que o nosso debate científico e nossa prática profissional considerem toda a complexidade do sistema alimentar e os modos de produção e de vida sustentáveis. Essa preocupação também se fez presente nesta edição do CONBRAN. Com o apoio da ALNUT e do Conselho Regional de Nutricionistas – 6ª Região/CRN6, trouxemos para o espaço do CONBRAN 2022 uma feira agroecológica que contou com a presença de agricultores e agricultoras representando suas respectivas cooperativas ou associações, oriundos de comunidades quilombolas, povos indígenas e de assentamentos de reforma agrária das regiões Sertão, Agreste e Zona da Mata Alagoana. Nessa feira foi possível apresentar e comercializar produtos (alimentos e bebidas) processados de forma artesanal, mas com muita sabedoria ancestral aliada à tecnologia de alimentos. Também conhecemos suas artes que impactaram pela beleza e complexidade, não apenas ao público do CONBRAN, mas também a comunidade em geral. A perspectiva da sustentabilidade foi pensada e trazida na prática neste espaço que, obviamente, não foi capaz de representar toda a diversidade do estado de Alagoas.

Nesta edição do CONBRAN também inovamos metodologicamente. Tivemos a oportunidade de debater em um espaço aberto e dialógico — Tenda É-comida: Agroecologia, Nutrição e Saúde — temas complexos que se conectam com várias dimensões do alimentar e nutrir nas diferentes fases do ciclo da vida, como propõe o tema central do evento.

Na logomarca do XXVII CONBRAN consta uma jangada, em alusão aos nossos pescadores e pescadoras, e o predomínio das cores azul e vermelho, pois, junto com o branco, são as cores da bandeira de Alagoas. Essas cores foram escolhidas por estarem presentes no brasão estadual e remetem aos ideais de LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE. A esses ideais, acrescentaríamos que o azul poderia representar o nosso mar e as lagoas desta cidade conhecida como PARAÍSO DAS ÁGUAS. Já o vermelho, a cor do sangue que corre em nossas veias, ratifica nossa OPÇÃO PELA VIDA. Vida com liberdade, igualdade e fraternidade.

Infelizmente estamos vivendo um momento em que pessoas de uma região brasileira atacam e discriminam outras por não aceitarem a imposição de seu desejo por um modelo político excludente e acentuador de iniquidades sociais e de acesso a bens e serviços, inclusive educação e saúde, com estímulo à violência para consagração desse modelo.

Lamentavelmente, em pleno curso do CONBRAN 2022, o Governo Federal decreta cortes adicionais no orçamento de custeio e investimentos das universidades (IES) e institutos federais (IFES). Apesar de estarmos ativamente presentes no CONBRAN, nosso compromisso com a construção do conhecimento e com as IES e IFES nos levou à mobilização — ainda que virtualmente — e, assim, o Governo recuou do contingenciamento. Sabemos que nossas instituições estão colapsando por falta de verbas e, se não revertida essa situação, haverá a inviabilização do seu funcionamento. Seria o fim para uma parcela relevante da população ter acesso ao ensino superior, público, gratuito, laico e de qualidade socialmente referenciada.

Ainda em se tratando de desmontes, o Ministério da Economia enviou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) no qual consta um corte de 61% do orçamento para 2023 das ações de Promoção da Saúde, Alimentação e Nutrição e Atividade Física, reduzindo o orçamento de 175 milhões, solicitados pelo Ministério da Saúde, para menos de 68 milhões.  Em um cenário pós-pandemia da Covid-19, com importantes agravos à saúde e à condição nutricional da população brasileira, esse corte impactará ainda mais nos indicadores para alcance das metas globais pactuados por estados-membros da Organização Mundial da Saúde para 2025. É imprescindível que haja financiamento adequado para as ações estratégicas de fortalecimento da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), conforme detalhado por Bortolin, em 2021.

Nesse sentido, a Carta de Maceió reafirma o compromisso social e político de congressistas com a resistência aos retrocessos e ataques enfrentados e com a luta pela garantia de direitos humanos básicos e defesa do SUS.

Coerentes com nossa opção pela vida, lamentamos e nos solidarizamos com as famílias dos quase 700 mil mortos pela Covid-19 no Brasil.

Também não poderíamos encerrar este documento sem prestar homenagem aos povos indígenas, verdadeiros donos da Terra Brasilis, que vêm sendo atacados e desrespeitados em seus direitos. A eles, todo nosso apoio e solidariedade.

Desejamos que o povo brasileiro possa compreender nossas posições e se alinhar com esses propósitos, respondendo com convicção sempre que oportuno e necessário.

Por fim, saudamos o povo do Nordeste que tem historicamente resistido e mostrado ao Brasil os melhores caminhos a seguir.

VIVA O POVO DO NORDESTE!

VIVA O POVO BRASILEIRO!

Maceió, 07 de outubro de 2022.


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